Li essa entrevista num site e achei muito boa, gostaria de compartilhar , com o psicologo , doutor Tony Attwood, que hoje vive na Australia:
O Síndrome de Asperger (SA) está classificado como uma desordem do
espectro autista, o que, à partida, a coloca no campo da deficiência. Partilha
esta visão?
Considero
que as pessoas com Síndrome de Asperger possuem um modo de pensar diferente da
maioria, não necessariamente uma deficiência.
Como assim?
Estas
pessoas possuem, habitualmente, um grande desejo de aprender e procuram a
verdade e a perfeição usando ferramentas mentais diferentes do que seria de esperar.
A sua principal prioridade pode ser a resolução de problemas, ao invés de
satisfazer as necessidades sociais e emocionais dos outros. Será isto uma
deficiência?
Como se começou a interessar por estas questões?
Em 1971,
quando tinha 19 anos, trabalhei como voluntário numa escola de ensino especial,
pois já possuía algumas noções de psicologia e de desenvolvimento infantil. Foi
então que conheci duas crianças então consideradas autistas, de cinco e dez
anos, mas cujo comportamento não seguia os padrões ‘normais’ de classificação
no que diz respeito ao autismo. Entendi que eram situações tão cativantes que
decidi dedicar a minha carreira a estas temáticas. Nos casos mais severos, o
autismo é entendido como uma deficiência, pela ausência de discurso. Tal como
acontece por exemplo na cegueira, com a ausência de visão. Mas quem apresenta
Síndrome de Asperger pode ‘ver’ alguns aspectos do mundo social. Se estiver a
ler um jornal compreende os grandes títulos e as fotografias e percebe, por
exemplo, que alguém está a chorar. Por que razão isso acontece já lhe é mais
difícil entender. O mesmo acontece com sentimentos como o ciúme, o embaraço, ou
a desorientação dos outros.
Os portadores de Asperger são incapazes de ler emoções?
Nem
emoções nem situações sociais mais complexas ou subtis. Mas não lhes podemos
dar um par de óculos para que possam focar todos os pormenores de interacção
pessoal. Foi o que compreendemos à medida que íamos descobrindo mais sobre o
espectro autista. O que agora chamamos de Asperger esteve sempre à nossa
espera, a única diferença é que agora temos forma de o denominar. O Síndrome de
Asperger ocorre em cada 250 indivíduos, o que significa que todos os leitores
desta entrevista ou já conhecem ou vão conhecer alguém com Asperger.
Com menos de duas décadas de classificação clínica, há quem
defenda que Asperger se trata de um «autismo de alta funcionalidade». Depreendo
que não subscreve esta opinião…
De facto,
o SA é muito mais que um autismo com alta funcionalidade social. Nos casos de
autismo severo, é muito óbvio detectar qual é o problema e as pessoas procedem
a mudanças para responder às necessidades da pessoa. Mas se se tiver Asperger,
com sintomatologia perto do que é considerado ‘normal’ – ou seja com
expectativas de normalidade em relação à vida social, afectiva, laboral, etc. –
tal pode levar a uma infelicidade intensa.
De si mesmo ou dos outros?
De si
mesmo, das pessoas que ama e com quem o ‘aspie’ se relaciona. Porque todos os
que o rodeiam têm altas expectativas. O raciocínio dos pais, professores,
companheiros ou colegas de trabalho é o seguinte: estas pessoas são altamente
competentes nas áreas tecnológicas ou artísticas. Certamente devem também
possuir competências no campo social para coisas aparentemente tão simples como
manter uma conversa polida ou ler expressões faciais. Mas o facto é que quem
tem SA não possui essas capacidades. Será capaz de inventar fórmulas
matemáticas complexas mas não percebe quando está a aborrecer de morte o
interlocutor ou não hesita em chamar «estúpido» a um professor ou ao chefe se
acha que se tratam de pessoas realmente estúpidas.
Num mundo global e de comunicação de massas, isso significa a
falta de competências sociais essenciais. Concorda?
Sim e não.
Certamente que para fazer amigos, encontrar um parceiro ou manter o emprego é
necessário trabalho em equipa, algo que em que os ‘aspies’ têm muitíssimas
dificuldades. Porém, a sociedade actual está, por exemplo, permanentemente
sedenta de novas tecnologias de informação. Estas competências são cada vez
mais valorizadas e aí os portadores de Asperger e as suas capacidades podem ter
uma grande palavra a dizer. Atenção: os ‘aspies’ podem não ser apenas génios de
computação. Muitos destacam-se em variados campos científicos e tecnológicos ou
desenvolvem-se no campo artístico, por exemplo como pintores, escritores,
actores ou realizadores de cinema. O espectro vai de Da Vinci, a Mozart, a Van
Gogh ou a Einstein. E a muitos e muitos milhares de pessoas anónimas, que nunca
foram diagnosticadas como portadoras de Asperger.
O mundo seria bem menos rico se não tivessem havido ‘aspies’ ao
longo da história?
Certamente.
Por exemplo, é bastante provável que o gravador com que está a registar esta
entrevista tenha sido concebido por uma pessoa com SA (risos)!
Mas essa mesma pessoa não conseguiria ‘conceber’ um relacionamento
afectivo?
Naturalmente
que não, pois os relacionamentos não se movem pelas leis da lógica que lhes são
tão caros. Na relação com os outros não se consegue desenhar um esquema numa folha
de papel e seguir as indicações visuais e lógicas. É uma questão emocional e
inconstante. É aí que os ‘aspies’ sentem tantas dificuldades e é aí que têm de
ser compreendidos e auxiliados.
Há quem diga que uma boa estratégia para lidar com o SA é fazer
com que a criança aprenda mecanismos sociais que possa seguir. Quase como um
«mapa de socialização» que lhe servirá enquanto cresce e na idade adulta.
A
abordagem não pode ser medicamentosa ou cirúrgica. A fórmula tem de assentar na
aprendizagem. Os ‘aspies’ têm de aprender a fazer amigos, a arte da conversação
e muitas outras ferramentas de socialização. Se esse processo arrancar bastante
cedo é possível que aprendam com muito êxito. Temos de lhes explicar a lógica
de cumprimentarmos as pessoas, o facto destas poderem estar infelizes mas
sorrirem à mesma, em suma todas as contradições humanas que os portadores de SA
acham tão confusas. E dizem-no claramente: «as pessoas emitem mensagens com os
olhos e eu não as compreendo!», é uma expressão que oiço muitas, muitas vezes.
Os ‘aspies’ compreendem a linguagem dos computadores, da música, da matemática,
mas os níveis de linguagem subjectiva são-lhes completamente estranhos.
Por que razão sentiu a necessidade de criar o seu sistema de
critérios de identificação de Asperger (ver caixa)?
Os
sistemas anteriores de diagnóstico e classificação foram muito úteis para uma
primeira fase mas, em meu entender, não captam a verdadeira essência do SA.
Para além disso, foram concebidos muito antes da termos atingido a quantidade e
qualidade de conhecimento de hoje. Assim, tendo conhecido cerca de cinco ou
seis mil pessoas com Asperger, de muitas faixas etárias, condensei toda essa
informação numa metodologia que nos permite chegar a um bom nível de
entendimento de cada caso. Ou, pelo menos, acredito nisso (risos)! Necessitamos
de instrumentos para identificar estas situações em escolas e no seio da
família, para que possamos determinar o que se passa, para compreender e ajudar
as crianças. Este é o meu objectivo.
Trata-se de um ‘mapa de estrada’ para professores e famílias?
‘Mapa de
estrada’ é uma boa expressão. De facto, destina-se a ajudar a compreender onde
vamos, como devemos lá chegar e do que vamos necessitar durante o caminho. E
para desfrutar da viagem.
É possível desfrutar da viagem em conjunto com um portador de SA?
É
possível, desde que, no final, haja sucesso na forma como a criança, o jovem, o
adulto, é capaz também de desfrutar da vida. Não escondo que não é fácil, vão
surgir muitas dificuldades e problemas. Por exemplo, os níveis de ruído do
mundo de hoje. Quem tem Asperger é muito sensível ao volume sonoro e, por
vezes, até o barulho das conversas se torna muito perturbador e impossível de
suportar. Os problemas decorrentes do SA não acontecem só no campo social mas
também no campo sensorial.
Isto porque, na base do Síndrome de Asperger estão questões
neurológicas?
Ainda não
existem certezas absolutas, mas acreditamos que o síndrome surge como resultado
de factores neurológicos que afectam o desenvolvimento cerebral e não devido a
privações emocionais ou outros factores psicogénicos. Habitualmente, os nossos
cérebros dão prioridade à socialização: neste momento, ao ouvir-me, o seu
cérebro está a captar todos os sinais que acompanham o som da minha voz e a minha
expressão facial. Se não se é bom nisso, como nos casos de SA, então tudo o
mais é potenciado, por vezes até níveis insuportáveis para a pessoa. Em
situações normais, o som do piano [a tocar durante a realização da entrevista]
é irrelevante para o decorrer da nossa troca de impressões, porque ambos
conseguimos ‘baixar o volume’ das situações que estão a ocorrer em paralelo.
Quem tem Asperger não consegue ‘baixar o volume’: coloca tudo ao mesmo nível e
sente-se assoberbado com a quantidade de informação que lhe chega. Pura e
simplesmente, não a consegue gerir.
Isto acontece em todos os momentos, ou os ‘aspies’ têm a
capacidade de relaxar?
Têm a
capacidade de relaxar por si mesmos, em paz e sossego. É disso que necessitam.
Mas, por exemplo, onde é que se arranja paz e sossego no quotidiano escolar?
O conceito de «cegueira emocional» pode aplicar-se aos portadores
de Asperger?
Eu não
diria «cegueira». Ao invés, diria que lhes escapa algumas coisas do campo
emocional. Os ‘aspies’ podem ser bastante intuitivos em relação ao ambiente
emocional em que se encontram, mas podem não saber por que razão alguém está a
experimentar determinado sentimento e o que fazer para o encarar ou fazer
parar. Mais uma vez: há confusão, não cegueira.
É por isso que os especialistas dizem que quem tem SA consegue
amar, não consegue é fazer sentir aos outros que os ama.
Certamente.
São capazes de dizer que amam o pai ou a mãe uma única vez e passar o resto da
vida sem repetir essa declaração. Na lógica que lhes é tão querida, não sentem
necessidade de repetir o que o outro já sabe.
A personagem Forrest Gump podia ser classificada como portadora de
Asperger?
Absolutamente.
Trata-se de uma história maravilhosa, onde o protagonista tem uma capacidade
fantástica de enfrentar os desafios que a vida lhe coloca, sem perder a sua
candura e a sua bondade. Muitos dos portadores de Asperger não sentem a dor da
mesma maneira que Forrest Gump, nem são capazes de segurar um camarada ferido
nos braços como lhe acontece no Vietname. O que só vem provar que não existem
fórmulas nem exemplos estáticos neste campo. Mas acredito que o argumento que
deu origem ao filme foi baseado provavelmente em alguém com Asperger, mesmo sem
ser diagnosticado.
Há quem diga que os portadores de Asperger são demasiadamente
honestos para o mundo...
São! E os
primeiros a sofrer com essa honestidade a toda a prova são os mais chegados:
família, amigos e colegas. Se, por exemplo, uma mãe, em frente ao espelho
pergunta: «filho, estou bonita hoje?», se ele achar que não está vai-lhe dizer
isso mesmo, sem sequer equacionar se está ou não a magoá-la. Quando aprendem
uma piada, podem não se aperceber que não é mais adequada para contar à avó
durante o chá das cinco ou passam a vida a contá-la às mesmas pessoas. Pois se
resultou da primeira vez, pode resultar sempre, certo?
Os professores e os pais que têm de viver com uma criança Asperger
podem aprender a fazê-lo da forma mais feliz para todos. Até que ponto é
importante a sociedade fazer o mesmo?
É
essencial. De outro modo, os ‘aspies’ sentem-se extremamente infelizes. O
problema deles não é ter Asperger, são as atitudes dos outros. O que dói é ser
vítima de bullying na escola porque se é diferente, despedido no emprego porque
não se é bom a trabalhar em equipa ou porque se fez um comentário verdadeiro
sobre o chefe, mas que não é socialmente aceitável. A chave é reconhecer que
aquela pessoa é diferente e procurar guiá-la, ao invés de a criticar.
E como se consegue isso?
Através de
entrevistas como esta (risos)! Dando oportunidade ao grande público de conhecer
estas situações e a partir do momento em que todas as pessoas compreendam que a
vida dos ‘aspies’ pode ser muito mais feliz. Sim, nós podemos ajudá-los a
comportar-se adequadamente em sociedade – seja o que for que tal signifique –
mas se as pessoas perceberem exactamente o que se passa com aquele indivíduo
tão especial, a vida tornar-se-á mais fácil. Para todos. Um bom princípio é
aprenderem a descontrair junto de uma pessoa com Asperger.
O mundo seria um lugar melhor ou pior se a ciência conseguisse
eliminar o Síndrome de Asperger?
Seria
desastroso! A maior parte das pessoas passam a esmagadora maioria do tempo a
socializar, mas os portadores de Asperger são bem mais criativos do que a
população em geral: concebem coisas. A cura para o cancro será provavelmente
descoberta por alguém com Asperger! Este tipo de capacidades são-nos
absolutamente necessárias. Nós necessitamos de variedade enquanto espécie, de
outro modo entra-se num totalitarismo de raça superior. A diversidade é um
trunfo biológico de grande importância. Precisamos de pessoas com Asperger.
Durante a sua estadia em Portugal [para o congresso da Fundação
Renascer] contactou com pessoas que se dedicam não só à temática de Asperger
como à das perturbações autistas em geral. Em sua opinião, que caminho há ainda
a trilhar?
Um caminho
muito longo! Não apenas para as crianças e jovens como também para as suas
famílias. Esta situação já é suficientemente difícil para que tenham ainda de
discutir com as autoridades sobre a classificação do síndrome e muitas outras
questões. Como se diz na língua inglesa, é «adding insults to injury» (juntar
insultos à adversidade)! Quando uma pessoa é cega, os poderes públicos não
hesitam em prestar a ajuda considerada necessária, tanto a ela como aos que lhe
são próximos. Tal não acontece nos casos de Asperger e é aí que as coisas têm
de mudar. O valor de uma sociedade é medido na qualidade da ajuda prestada a
quem dela necessita, não pelo seu produto interno bruto ou pelo número de
carros de luxo a circular nas estradas. É a forma como tratamos quem está em
desvantagem que nos deve classificar enquanto sociedade. A visão que a maior
parte das pessoas tem – incluindo as autoridades competentes, em muitas
situações – é a de que as atitudes de uma criança com Asperger se devem a mimo
em excesso ou podem ser ‘reparadas’ facilmente. Eu gostava que fosse assim tão
simples! No que diz respeito a recursos, o poder político só tomará uma atitude
se os cidadãos a exigirem. Repito: é preciso apoio, não críticas. O SA não é
causado por erros na educação das crianças ou por não serem amadas. Elas não se
isolam por falta de amor. Dizer isso é um profundo insulto para as famílias, em
especial para os pais.
Por que razão os rapazes são mais afectados pelo SA?
Ainda não
conseguimos determinar porquê. Em termos gerais, os rapazes são menos
competentes na socialização e as raparigas tendem a ser mais bem-educadas e
mais atentas às convenções sociais. No entanto, a incidência de SA é muito mais
comum nas raparigas do que julgávamos ao início.
Este é um fenómeno em crescimento a nível global?
Está a
tornar-se mais facilmente reconhecido. Ou seja, não sabemos o que está a
aumentar, se os casos se o diagnóstico. Foi feito recentemente um estudo em
Portugal sobre a incidência do autismo que trouxe à luz um grande número de
casos nos Açores. Para além das questões neurológicas, parece haver diferenças
marcadas pela geografia. Por vezes, as pessoas com personalidades isoladas
tendem a viver em ilhas e existe uma tendência genética que vai multiplicar-se
na população. É preciso continuar a procurar conhecer as situações, elaborar
novas ideias e aplicá-las.